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Expressão e Arte: A música paraense na noite manauara

  • Foto do escritor: Manauarou
    Manauarou
  • 31 de jul.
  • 6 min de leitura

A cena noturna manauara pulsa em várias direções: do underground roqueiro à explosão do forró universitário, passando pela crescente presença da cena clubber e da música eletrônica local. É uma diversidade que reflete o próprio espírito da cidade: plural, misturada, viva. Mas entre tantos caminhos musicais, um tem se destacado cada vez mais nas pistas da capital amazonense: a presença marcante da música paraense.


TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou
TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou

Amazonas e Pará dividem mais que uma fronteira física – partilham águas, histórias, fluxos migratórios e, agora com mais intensidade, sons. Ainda que cada estado tenha sua identidade cultural muito bem marcada, a noite de Manaus vem abrindo espaço com entusiasmo para o som do vizinho. A música paraense não chega como um “exótico” ou “estranho”, mas como algo familiar, que ressoa nos corpos e corações de quem vive aqui. Uma presença que vai além do carimbó e da guitarrada, que já têm seu lugar no imaginário nacional, e mergulha nas profundezas do brega, do tecnomelody, do rock doido e das marcantes. A cultura musical manauara sempre foi atravessada por influências de fora e de dentro. A força do boi-bumbá, especialmente na época do Festival Folclórico de Parintins, é inegável. O sertanejo, o forró e até o brega romântico dominam rádios e casas de show. Mas há um movimento emergente que busca uma nova síntese, que se reinventa em encontros sonoros e afetivos. O MPA (música popular amazonense), o beiradão e outros ritmos ganham novas camadas quando dialogam com a cena paraense.


Dj Izan. Foto: @Manauarou
Dj Izan. Foto: @Manauarou

Festas como a Treme-Treme e o Baile Cult são espaços onde essa troca se materializa. Segundo a DJ Izan, idealizadora da Treme-Treme, a ideia surgiu da vontade de “fazer uma imersão cultural do som periférico paraense – do rock doido, do brega, das marcantes, do passadão, do real som de periferia”. Em sua fala, transborda orgulho e convicção: “A gente sentiu necessidade de fazer uma coisa genuína, sem misturar com o que acontece aqui. A gente quis levar de fato um rolê paraense, e só quem é de lá sabe o que é isso”.

Mesmo morando atualmente em Belém, Izan e seu sócio, o DJ JP (que ainda vive em Manaus), sentem na pele a importância de criar esse espaço de reencontro. “A Treme-Treme conseguiu reunir muitos paraenses que moram em Manaus e que sentiam falta disso. É um tipo de reencontro regional, uma maneira de fortalecer laços, de fazer trocas”, diz ela. A festa já virou um dos redutos favoritos da juventude nortista que quer dançar brega sem vergonha, com salto quebrado e alma lavada. E essa expansão não é isolada. O Baile Cult, festa que mistura estética clubber com raízes periféricas, anunciou que sua próxima edição será dedicada ao “Rock Doido”, um dos subgêneros mais irreverentes da música paraense. Quem comanda a festa será a DJ Miss Tacacá, mais uma ponte cultural entre os dois estados.

Mas talvez um dos maiores ícones dessa conexão entre Pará e Amazonas seja a própria Joelma. A ex-vocalista da Banda Calypso é figura recorrente nos palcos amazonenses – dos interiores às grandes arenas da capital. Com dois DVDs gravados em Manaus e uma legião de fãs apaixonados, Joelma é prova viva de que essa suposta “rixa” entre paraenses e amazonenses cai por terra quando a música entra em cena. É no batuque, na guitarra e na voz forte que as diferenças se dissolvem. No festival Psica, um dos maiores do Norte, essa ponte cultural foi celebrada de forma explícita: os bois Caprichoso e Garantido foram convidados para o palco, mostrando que, quando se trata de cultura, a Amazônia fala em uníssono – mesmo que com sotaques diferentes.


Vitória Miranda. Foto: @phlucas
Vitória Miranda. Foto: @phlucas

Essa interligação vai além dos palcos e pistas. Vai até o mais íntimo da identidade. Vitória Miranda, estudante de psicologia, afroindígena do povo Pankararu e manauara, compartilhou com o Portal MAO o quanto a música paraense molda sua história pessoal. “Minha paixão pelo brega começou no meu sangue, graças à ancestralidade do meu pai. Eu lembro de existir e já amar Joelma e o ritmo Calypso. As roupas, as danças, o ritmo contagiante... tudo isso me moldou como pessoa”, conta.

Vitória narra como os almoços de família sempre foram embalados por Banda Calypso, Companhia do Calypso, Furacão do Calypso. Mesmo quando outras crianças escutavam outros estilos, ela se sentia “fora da caixa”, mas nunca sozinha. “A música paraense me construiu. Meu coração é brega. O brega é estilo de vida, é gritar aos quatro cantos: ‘AMO VOCÊ!’ e nos outros quatro: ‘ESQUEÇA MEU CORAÇÃO’”, diz, com uma paixão impossível de ignorar. Ela ainda deixa um agradecimento especial: “Menção honrosa à festa Treme-Treme, onde pude dançar com uma das minhas DJs favoritas, a DJ Pedrita. Dancei até o salto arrebentar. Encontrei e beijei amores ao som de um brega ou carimbó. Fui feliz”.

O brega, o tecnomelody, o rock doido e tantas outras vertentes paraenses não são apenas estilos musicais: são manifestações culturais, modos de viver e resistir, de amar e lembrar. E é isso que essas festas têm proporcionado em Manaus – não apenas um entretenimento, mas uma celebração da ancestralidade nortista. Essa ponte cultural entre Pará e Amazonas também se reflete nos trajetos migratórios que marcam a história recente da região Norte. Com os deslocamentos em busca de estudo, trabalho ou melhores condições de vida, muitos paraenses fixaram residência em Manaus. Com eles, vieram não apenas suas memórias afetivas, mas também seus sons. A música, nesse sentido, se torna um elo entre passado e presente, entre a terra de origem e o lugar de acolhida.


Dj Pedrita. Foto: @Manauarou
Dj Pedrita. Foto: @Manauarou

Como explicou a DJ Izan: “A gente mora próximo, mas tem poucos conhecimentos culturais um do outro. Então fazer essa festa também é uma maneira da galera conhecer artistas, cantores e produtores daqui. A Treme-Treme quer promover esse encontro. É a nossa forma de fazer Manaus ouvir o som de Belém, e de Belém também ouvir o som de Manaus. É criar uma rede, uma conversa”. A dimensão afetiva dessas festas é impossível de ignorar.

A Treme-Treme, por exemplo, não é só uma festa. É uma vivência. É um espaço de pertencimento para quem cresceu ouvindo Banda Calypso nas reuniões de família, para quem aprendeu a dançar brega ainda criança na sala de casa, e hoje encontra no evento uma forma de se reconectar com suas raízes. Como disse Vitória Miranda: “Mesmo que esse ritmo não seja tão comercializado em Manaus, sobretudo com o público jovem, seguirei nas trincheiras de consumi-lo. O brega é a minha vida. Se ele não existisse, eu seria a pessoa mais triste a caminhar nessa terra”.

E a juventude nortista tem demonstrado cada vez mais interesse por essas referências. A internet, as redes sociais e os streamings ajudaram a popularizar artistas paraenses como Gaby Amarantos, Fafá de Belém, Viviane Batidão, e até nomes independentes da cena tecnobrega e do brega-funk que vêm conquistando públicos diversos. Esse movimento também fortalece a cena local de DJs e produtores, que começam a experimentar fusões entre o beiradão e o tecnomelody, entre o carimbó e o funk, criando novos sotaques para o Norte.


TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou
TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou

Esse intercâmbio também aponta para um futuro mais integrado culturalmente entre os estados amazônicos. Como destaca a própria DJ Izan: “É descentralizar o que conhecem do Pará só pelo carimbó ou pelo tecnobrega mais famoso. A gente quer mostrar também o brega underground, o som periférico, os artistas das quebradas. E, ao mesmo tempo, queremos dialogar com o que tá sendo produzido em Manaus. É um convite para troca, para fortalecer a música do Norte como um todo”. Em uma cidade como Manaus, onde a vida noturna vive entre o calor dos beiradões, as baladas universitárias e os shows de médio porte, o fortalecimento dessa cena paraense abre caminhos para novas experiências culturais. É uma alternativa à homogeneização da noite brasileira, muitas vezes dominada pelos mesmos hits do eixo Rio-São Paulo. Aqui, o norte canta alto, com timbre próprio, com batuque, com aparelhagem.

Talvez por isso tantos jovens, como Vitória, se sintam “vivos” nesses espaços. A festa não é apenas diversão, mas afirmação. É a possibilidade de ser inteiro, de não precisar esconder seus gostos, de dançar um brega com orgulho. “Ainda me sinto um pouco fora da caixa, mas não ligo. O brega é estilo de vida. É assumir seus amores e paixões intensamente”, diz ela com brilho nos olhos. E que bom que esses espaços estão se multiplicando. A noite manauara, com toda sua pluralidade, ganha ainda mais força quando acolhe o som da vizinhança. Quando DJs colocam uma faixa de aparelhagem no meio do set, estão não apenas fazendo o povo dançar – estão criando pontes entre histórias, territórios e afetos.

No fim das contas, essa “noite paraense” em Manaus não é moda passageira. É sintoma de algo mais profundo: da necessidade de nos reconhecermos como parte de uma mesma floresta, uma mesma memória, uma mesma festa. Porque, entre o batuque do carimbó e o som dos bois de Parintins, o que une o Norte é o desejo de dançar.


TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou
TREME-TREME: 2° Edição. Foto: @Manauarou

E se alguém disser que há uma rixa entre paraenses e amazonenses, a resposta pode vir no formato de um refrão: “Vem na onda do Calypso, na levada do Calypso. Quem não gosta de Calypso, não é brasileiro.”

 
 
 

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